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chocadeira

Acredito que só fui entender o significado da expressão que dá nome a esta crônica bem recentemente. Era comum ouvi-la, quando eu era criança, sempre que alguém, jocosamente, dizia que o filho não dava atenção aos pais, como se fosse filho de chocadeira. Como não tinha a real compreensão do que isso envolvida, eu ria também, até porque, por óbvio, nenhum ser humano nasceria de uma chocadeira.

Hoje essa ideia me causa profunda tristeza. O Criador, seja ele quem for, programou quase todos os nascimentos de modo a que os recém-chegados, gente ou bicho, sejam ajudados, cuidados e/ou amados por aqueles que os trazem a este nosso mundo. Embora haja aqueles que mal nascem e já estão à própria sorte, grande parte das espécies, penso eu, tem ao menos uma mãe.

E para aqueles que nascem sob essa tutela, nada ou quase nada é tão triste quanto à ausência de uma mãe ou de quem lhe faça as vezes. Os bebês humanos, dependentes por longos anos de quem deles alimente, já vêm ao mundo procurando o acalento, o acolhimento. A História está repleta de tristes registros daqueles que foram privados do mínimo, do amor que, negado ou extirpado, não raro lega vazios, produz almas atormentadas.

Com os animais nem é tão diferente. Inúmeros são os casos de animais cujas mães, mortas por causas naturais ou por mãos humanas, ficam ao desamparo, incapazes de sobreviver sem ter quem os acolha. Em várias situações, apegam-se aos humanos em uma relação de dependência emocional que até os impede de retornar à vida selvagem.

Mais próximo de nossa realidade, filhotes de cães e gatos separados dos pais quando ainda são muito jovens resultam em choro que não raro irrita quem os confunde com coisas ou meras pelúcias. Quase incapazes de se aquecer, filhotes minúsculos são relegados a quintais escuros e frios, repreendidos ou machucados quando se comportam como o que são: filhotes, bebês da mãe natureza.

Mas voltemos à chocadeira. Quem, assim como eu, criou galinhas, e as minhas viviam soltas por aí, fazendo o que bem lhe desse na telha, sabe que os pintinhos andam todos ao redor da mãe, com ela aprendendo a ciscar, a se limparem, a procurar comida. Protegidos da chuva e do sol sob as asas daquela que não hesita em defendê-los, experienciam uma vida de cuidados, de contato físico. São trocas imprescindíveis de uma existência, seja ela do tamanho e da forma que for.

Dia desses, assistindo a uns vídeos na internet, deparei-me com a cena de que um homem, de nacionalidade não revelada, recolhia os ovos que já começavam a ser bicados pelas aves, terminado de retirá-las de dentro dos deles e, na sequência as deixando em uma caixa ao lado da chocadeira. Sei que alguns leitores não concordarão comigo, direito que lhes assiste e um risco que aceito correr, mas quase nada é tão triste quando nascer de uma chocadeira, privado de qualquer acolhida, de contato, de afeto.

Há, claro, situações nas quais as chocadeiras são utilizadas para viabilizar nascimentos de aves em extinção ou de ovos abandonados, mas parece-me que nesses casos sempre haverá um pai, uma mãe substituta ou mãos humanas a amparar. Cruel mesmo é ser privado de tudo, até de um nascimento digno, do direito de ser um filhote, um bebê.

Atualmente não gosto e não uso mais a expressão “filho de chocadeira” porque ela me remonta a uma solidão que nada que vive deveria sentir. Mais do que expressões que são consideradas politicamente incorretas, algumas das quais por puro modismo ou lacração, há outras cujo significado real vale, pelo menos, a reflexão.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada e professora universitária – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com