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luto

Há poucos dias conversávamos sobre a vida, sobre receios do futuro, sobre planos. Trocávamos tintas, cursos online, piadas, reflexões, desabafos e todo tipo de conversa no nosso grupo de três amigas. Uma amizade que surgiu ao acaso, formada pelo fato de sermos vizinhas, moradoras de uma rua de um único quarteirão, na zona sul de São Paulo.

Tivemos nossas diferenças, é claro. Até porque onde há pessoas há divergências. Mas no mais das vezes éramos risadas e cumplicidade, tal qual um grupo de apoio recíproco, cada uma com seus problemas, suas trajetórias de vida, mas sempre sobrando um ombro para suportar o peso alheio.

Quando a Gigi, uma de minhas cachorras começou a ter ataques epiléticos, várias foram as vezes em que, madrugada alta, uma delas estava comigo nas clínicas de atendimento 24h, entre outras formas de auxílio. Pratos de comida circulavam para lá e para cá. Ia um pão, voltava um bolo, um macarrão. Ia um choro, voltava um riso.

Na pandemia nossos laços se fortaleceram, estreitados pelo medo, pela ânsia de sobreviver. De lá para cá seguimos, preenchendo os vazios das nossas falhas com o afeto que só a amizade é capaz. Não uma relação de amizade idealizada, mas a possível entre três mulheres maduras, iguais no amor pelas letras, pelos animais e pelas artes, mas também diferentes de tantos outros modos.

Há seis meses, no entanto, uma de minhas amigas, a quem chamarei aqui apenas de Z., ficou viúva e tal perda a abalou demais. Foram tempos sombrios e difíceis, nos quais até as estruturas de nossa amizade sofreram abalos, felizmente reparados. De personalidade forte, Z. aos poucos se recuperava, tentando submergir naquilo que lhe tirava o ar.

Há poucos dias, no entanto, tudo mudou e onde eram três, somente duas restaram. Sem mandar qualquer aviso ou sinal, Z. nos deixou, repentinamente. Sem responder às mensagens, ligações ou mesmo à campainha, incumbiu-me, a pedido da família, usando a chave de segurança que estava com D., a outra de nós, ir até lá verificar o que estava acontecendo.

Lutando contra um pressentimento ruim, atravessei a rua e respirei fundo antes de tocar a campainha. Todas as janelas fechadas e um silêncio fora do usual em uma casa com três cachorras me invocavam sensações que eu buscava expulsar. Ao barulho da campainha as cachorras desataram a latir. Abri a porta com cuidado e nada no mundo me preparara para vê-la no sofá, cercada pelos animais, visivelmente sem vida.

Primeiro fiquei muda, depois gritei, chorei, fiquei insana. Como assim? Menos de vinte horas antes estávamos trocando mensagens de áudio, rindo e falando bobagens. Ela havia me pedido um bombril. Queria limpar uma panela de forma decente. Estava preocupada com um súbito resfriado. Horas antes, sem resposta, eu havia perguntado se ela precisava de algo da farmácia e, como sempre brincávamos umas com as outras, quando as respostas demoravam, perguntei se ela estava viva. Não estava.

Estou em choque. Ela parecia dormir. Morreu, segundo a perícia, de forma instantânea. O coração da minha amiga hipertensa, asmática e fumante não deu conta das tantas emoções dos últimos anos. Viveu menos de seis décadas, mas bateu intensamente durante esse período. Amou, foi muito amada, riu, chorou, xingou, berrou, deu colo, casou-se, teve um filho separou-se, casou-se de novo, enviuvou e sempre esteve cercada dos cães e amigos que a amavam e aos quais era devotada.

Para quem fica, resta a saudade, sobram as boas lembranças e a certeza de que não há tempo a perder, não há terceiros tempos, nem mesmo prorrogações. A vida, noiva fugidia das horas, não espera por nós. Amar é imperativo.

Vá em paz minha amiga e meu derradeiro carinho é o primeiro de todos os meus textos que você nunca vai ler.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e está de luto por uma amiga querida – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br