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sem palavras

Depois de um verão escaldante, durante um outono morno, o inverno resolveu se adiantar e, o frio, dar as caras. Neste momento em que escrevo, inclusive, as notícias são de neve no estado de Santa Catarina. Aqui, em São Paulo, vivenciamos noites bem frias, com dias ventosos, mas com sol na maior parte do tempo. E o paulistano, assim, não sabe nem com que roupa sai de casa, porque, não bastasse, pode aparecer uma garoa, vinda do nada, passageira.

Como faço todos os anos, tomei a vacina da gripe e, na medida do possível, cuido da saúde, mas, no fim das contas, é meio aleatório, pois nunca sabemos quando e nem como, entraremos em contato com vírus e outras perebas. Desde a pandemia, adotei o álcool gel e o nunca parei de higienizar as mãos depois de cumprimentar alguém ou de tocar em objetos fora de casa. Ficou algo automático. Ou neurótico, como preferirem.

De um jeito ou de outro, seja pela sorte, seja pela fé ou pelas precauções adotadas, tenho conseguido escapar das gripes e resfriados com certo sucesso. Mas o frio repentino, trazido pelo vento arisco e gelado, trouxe-me um mimo, um contratempo que eu não esperava. Sem muitos avisos, sem espirros, tosse ou qualquer outro sintoma mais evidente, percebi que, em uma noite dessas, minha voz estava “cavernosa”, grave e estranha. Fui dormir, sem dar muita importância ao fato, certa de que não haveria desdobramentos, mas eu estava enganada.

No dia seguinte, tão logo acordei, para minha surpresa, ou melhor, para meu desespero, minha voz havia praticamente evaporado. Eu não conseguia falar uma única palavra, exceto uns murmúrios. Para além de lecionar, de falar em público, sou do tipo de gente que fala o dia inteiro. E não me abalo se faltar, eventualmente, companhia humana, pois tenho seis gatos, duas cachorras e muitas minhocas dentro da minha cabeça, com as quais sempre posso conversar. E acima de tudo, converso com o Criador, o tempo todo e em voz alta. Sou daquelas que não acreditam em silêncios absolutos. Fico constrangida, inclusive, quando em algum ambiente, paira silêncio inesperado, vazio e, sem me dar conta, já estou perguntando do tempo ou de qualquer coisa que possa reestabelecer os sons, o diálogo.

E como se não bastasse, ainda canto com muita frequência e, na minha imaginação, eu o faço bem. Tenho pena, vez ou outra, dos vizinhos, mas agradeço pelos meus pets não poderem me pedir para parar. E canto em qualquer língua, em uma língua que só eu sou capaz de entender. Então, imaginem só o meu pânico ao me perceber incapaz de falar! E é só nesses momentos que percebemos o quanto somos feitos das coisas que nos traduzem, dos sentidos pelos quais experienciamos o mundo, das nossas formas de expressão.

Depois de consultar minhas bases médicas, especificamente a coitada da minha irmã, médica involuntária de toda família, tomei os medicamentos prescritos e comecei a fazer gargarejos, misturando água, limão, vinagre, própolis, mel e tudo o mais que tinha à mão. Horas depois, para meu alívio, já era capaz de pequenas frases, ainda que em falsetes. Foi como romper grilhões, como me libertar de uma estranha comporta que manteve aprisionado um turbilhão de palavras, represadas por quase um dia.

O fato é que, na correria das horas, dos dias ocupados pelas responsabilidades cotidianas, acabamos nos esquecendo da importância e da dádiva da saúde, mesmo diante de coisas mais simples e transitórias. Acredito que em poucos dias eu esteja completamente reestabelecida, importunando vizinhos e animais com minhas cantorias, bem como de volta às minhas aulas e participações na mídia, mas ficar um dia todo em silêncio, calada à revelia, recordou-me de agradecer, mais vezes, em alto e bom som, pelas palavras que posso despejar pelo mundo, capaz de escolher as minhas pausas. Sou a minha voz e minha voz é minha advogada por onde quer que eu vá...

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e aprecia preencher silêncios – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br