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noel

Eu o notei pela primeira vez enquanto caminhava com minhas cachorras por uma das ruas do bairro, num dos poucos momentos nos quais coloco os pés e a mente para fora de casa. Nas últimas semanas mudei um pouco o itinerário dos curtos passeios diários, escolhendo uma ruazinha estreita, arborizada e que quase sempre está deserta.

Normalmente espero que o sol esteja mais baixo e o chão menos quente para dar uma voltinha com minhas duas cachorrinhas, Gigi e Juju. Nesse rápido momento de falsa liberdade, mesmo que de máscara, e que serve para manter nossa sanidade mental, enquanto elas se colocam a cheirar tudo o que encontram pelo caminho, ponho-me a observar os jardins e as casas.

E foi assim, em um passeio desses que eu o vi. Pendurado em uma arvorezinha, suspenso por um fio preso às costas, lá estava ele, um pequeno Papai Noel de pano. Não sei precisar há quanto tempo foi deixado ali, como um quase enforcado, tampouco qual a motivação, já que praticamente está oculto em meio à densa folhagem.

De início pensei que logo alguém o retiraria de lá, talvez até uma criança que o visse tão colorido. Contudo, vários dias se passaram e, intocado, continua no mesmo lugar. Confessor que a imagem me é perturbadora e que me remete à sensação de abandono, de desemparo.

Vestido como tradicionalmente se usa vestir a figura do Papai Noel, o boneco, em bom estado de conservação, está completamente descontextualizado. Em pleno verão, com roupas apropriadas para dias muito frios, sozinho, sem renas, duendes ou presentes, o bom velhinho parece colocado de castigo, como se tivesse alguma culpa ou estivesse em expiação pelo Natal que quase não houve.

Será deixado lá até que o outro Natal venha e que ele possa se redimir? Aguarda o resgate de alguma boa alma, mas ignora que temem até mesmo tocá-lo, temerosos do vírus que parece infectar todas as superfícies. Talvez se desfaça aos poucos, pelas intempéries, esquecido como desejamos que se apague das nossas memórias quase tudo dos últimos doze meses.

Tenho a impressão de que ele gritaria se pudesse, se, assim como todos nós, não estivesse com tantas coisas presas na garganta. Símbolo de um Natal que não veio, dos abraços que não puderam ser dados a contento, foi lá pendurado por alguém que não pode ou não quis lhe destinar lugar mais apropriado.

Acredito que, de algum modo, estamos todos na mesma situação desse boneco de pano. Vivemos uma realidade paralela àquela que convencionamos chamar de normal. Pouco do antes restou no agora e a imensa maioria de nós, creio, teme ser a sua vez de ser dependurado solitário, afastado dos seus, sufocado, sem ar, sem que haja alguém capaz ou imbuído de nos resgatar.

São várias as tardes nas quais passo pela mesma rua, sob pretexto de caminhar, mas desejo checar a situação do Noel. Há dias nos quais desejo que tenha sido retirado, que alguém dê fim ao suplício de ser um Papai Noel pária. Noutros, é quase como se esperasse para encontrar um amigo, pois existe algum conforto nessa permanência, por mais estranho que possa parecer.

Sei, entretanto, que haverá um dia, um dia qualquer, no qual ele não estará mais naquela árvore. Sumirá e isso sempre me será um mistério, mas vou gostar de imaginar que se foi montado no trenó, a caminho de preparar um Natal feliz, repleto de presentes e futuro.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e descobriu o local do exílio do Papel Noel – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br