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sorveteiro

Estávamos no sofá quando ouvimos um apito. O som fez uma escada pela qual desci até minha infância, no tempo em que o sorveteiro passava na rua todas as tardes, anunciando sua chegada com apitos contínuos e longos. Não sei se havia um combinado prévio, uma diretriz, mas todos apitavam da mesma forma.

A criançada parecia brotar de dentro das casas, implorando aos pais por um sorvete. Geralmente, na verdade, por dois ou mais. Não importava que tivéssemos acabado de almoçar ou que fosse quase hora do jantar. Sorvete era sorvete e não precisava de ocasião ou horário para ser consumido.

Em geral eram picolés ou até mesmo aqueles sorvetes caseiros, de saquinho. Nem havia exatamente uma preferência, desde que fosse sorvete. Lembro-me de que havia uns carrinhos que tinham sorvetes de marcas mais conhecidas, mais sofisticados, mas, ao menos na minha infância, a criançada topava tudo para se refrescar no calor dos verões que pareciam nem ter fim.

E é preciso lembrar que tal época antecede, e em muito, a existência dos cartões de crédito e débito, do pix, etc. Ou seja, os pais, tios, avós ou seja lá quem fosse, tinham que ter dinheiro vivo sempre à mão para aplacar os desejos das crianças doidas pelos carrinhos que todos os dias anunciavam sorvete, pipoca ou docinhos em geral e foram muitas as vezes nas quais vi minha mãe procurando por moedas perdidas pela casa, esquecidas no fundo da bolsa, enquanto o moço aguardava pacientemente.

Engraçado como tudo mesmo muda com o tempo. Eu continuo gostando de sorvete, mas de longe com a mesma fissura. Nem é incomum, aqui em casa, que picolés ou potes de sorvete restem esquecidos pela metade no congelador. Muito provável que seja pela ausência de crianças, mas em algum momento a criança dentro de mim entendeu que o sorvete não desaparece do mundo se não for comido todos os dias.

Naquela época também passava pela rua, embora com menos frequência, o carrinho do algodão-doce. Embora nunca tenha sido meu favorito, ficava fascinada ao vê-lo surgir, parecendo por mágica, branco, azul ou rosa, até ser enrolado em um palito gigante. Comia com os olhos e depois me entupia daquele açúcar colorido, em forma de nuvem.

Já quando o carrinho dos docinhos era quem surgia na rua, o propósito era outro. Muito mais do que os doces, eu queria colecionar os anéis de pedras coloridas. As tais “pedras preciosas” nada mais eram do que vidro colorido, mas as meninas competiam para ver quem tinha todos os modelos e cores, lamentando só terem dez dedos nas mãos para exposição das luxuosas coleções.

Não penso que antes fosse melhor do que hoje, só para constar. Nem pior. Só era diferente. Um tempo que habitei. Provavelmente, se eu tiver sorte, como me lembrarei de hoje daqui uns trinta anos. Por isso a alegria de cada dia é única, seja ao ouvir o apito do sorveteiro ou, no sofá, ao cairmos na risada por percebermos que o apito era do velhinho que passa na rua amolando facas, tesouras e afins. O hoje é único. Um presente. Que seja doce, mesmo quando for amargo.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e usava dez anéis coloridos em tardes distantes – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br