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caes 1

Eu o tinha visto havia umas duas semanas. Não que eu tivesse especialmente notado o mendigo, mas sem dúvida reparei nos filhotes de cachorro que estavam com ele porque aqui no nosso bairro, infelizmente, há uma quantidade grande de pessoas em situação de rua, mas, por outro lado, não se vê animais abandonados.

Lembrei-me de que eu tinha alguns sachês sobrando, os quais eu não usaria e fiz uma pequena sacola com alguns itens também para o homem, porém embora o tivesse procurado por todo lado, não o encontrei mais. Pouco mais de uma semana depois, entretanto, nós o vimos no quarteirão de casa, acompanhado dos cães. Como ainda tinha os itens separados na sacola, fomos lá para entregá-los.

Assim que nos aproximamos um dos três filhotes começou pular na minha perna. Muito embora todos estivessem aparentemente bem alimentados, era possível ver a agitação das pulgas sob o pelo curto. O homem, que remexia em uma caçamba de entulho, logo me advertiu que não colocasse a mão nos filhotes, de modo enfático.

Recebeu a comida, servindo de pronto um dos sachês aos cachorrinhos que o devoraram em poucos instantes. Agitado, falava sem parar, explicando que pede não coloquem a mão nos filhotes para que eles não se habituem a seguir as pessoas, pois podem ser atropelados, assim como aconteceu com outro de seus cachorros, dos quais somente sobrou o couro depois que um ônibus o esmagara no asfalto.

Ao total ele estava com quatro cães adultos, um deles idoso, além dos três filhotes, dois caramelos e um preto. Contou-nos que um dia, enquanto estava sob efeito de drogas e álcool, parado sob um pontilhão, e ao dizer isso nos olhou nos olhos e disse “Vocês não são bobos”, certificando-se de que não nos iludia sobre seu consumo de substâncias ilícitas– um homem parou o carro e colocou uma cachorra nos braços dele. O animal começou a lamber o rosto dele que, no meio da paranoia, mal sabia o que estava acontecendo. Antes de ir embora, o motorista perguntou ainda se ele precisaria da carteira de vacinação do animal.

Foi apenas no dia seguinte, quando estava consciente, é que se deu conta do abandono e da tristeza da cachorra que passou a segui-lo por todo lugar, dando cria um dia depois, aos três cachorrinhos dos quais agora ele cuida como pode.

Muito triste constatar o abandono em suas várias dimensões, dos humanos e dos animais. Foi difícil voltar para casa porque ele não parava de falar, talvez porque não tenha muita chance de fazê-lo ou porque talvez já nem viva mais inteiramente neste mundo.

Já era fim de tarde e o frio, que neste ano chegou tardio, estava gelando os ossos. Voltamos até ele com uma coberta, o máximo que pudemos fazer naquele instante. Admito que se não fossem os cães talvez eu não tivesse coragem de me aproximar, pois tenho vários receios, o principal deles das inúmeras doenças mentais e dos efeitos das drogas sobre essas pessoas. Lamento reconhecer isso, mas dizer o contrário seria hipocrisia e mentira.

Difícil entender uma pessoa que abandona um animal de estimação, impossível me colocar no lugar de quem vive(?)na rua, à mercê de tantas faltas. Fico envergonhada das minhas revoltas pessoais, das minhas discussões com Deus pelas pequenezas que se agigantam diante das minhas próprias questões.

Ignorante sobre os mistérios da vida, somente estou certa de que quase nada faz sentido ou pode ser compreendido dentro da reles existência humana.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e não entende nada de Deus – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br