Muito curioso o que o tempo vai fazendo conosco. Nem me refiro à questão física e estética, porque isso é assunto para outras reflexões. Quem já tiver vivido algumas décadas provavelmente entenderá melhor, porque é algo que vai acontecendo aos poucos, sem que nos demos conta. Em uma hora qualquer percebemos que não somos mais os mesmos.
E que bom isso, penso eu. Que tragédia seria passar por uma vida como uma linha estática, sem as subidas e descidas do nosso pulsar, no frigir das coisas.
Às vezes, enquanto escrevo, sinto como se algumas frases, nestes mais de vinte e dois anos como cronista, fossem meus próprios chavões, de tanto que os repito, mas de fato, como nunca sei se o leitor de hoje já foi um leitor de ontem, insisto em afirmar que envelhecer é um processo que vai te devorando pelas beiradas, larapiando verbos que, ao contrário das nossas pernas, parecem em fuga. Por outro lado, talvez por alguma lei de compensação, o tempo nos brinda com percepções que só o distanciamento da curva da vida nos permite. Sigo achando isso tudo incrível, embora e eis aí minha repetição, fosse bom poder deter alguns dos avanços da idade.
Criança, eu era fã de documentários sobre o mundo animal, o que de fato ainda sou, mas ficava horrorizada ao ver o leão matando uma jovem corsa ou mesmo um filhote de outro animal. Em certos momentos, era tomada de raiva pelos grandes caçadores, sempre torcendo para que a presa conseguisse fugir. Hoje, por mais que eu continue lamentando a morte, entendo que do outro lado há um animal que precisa se alimentar e aos filhotes. Óbvio, muito diferente do caçador humano por sádico prazer e abominável diversão.
Estava eu, dia desses, junto com meus quatro sobrinhos, andando a pé, de mãos dadas e inventando, com os menores, histórias sobre os pássaros e cachorros que víamos pelas ruas, quando de repente escutamos uma barulheira. Um majestoso gavião estava com um filhote de bem-te-vi no bico, enquanto tentava de desvencilhar dos ataques de outros bem-te-vis. Todos ficamos ali, meio hipnotizados pela cena.
Visivelmente morto, o filhote era a caça do gavião que, por certo, o levaria aos filhotes famintos. Em algum lugar, assim, havia pequenos gaviões esperando que os pais voltassem para alimentá-los pois, caso contrário, incapazes de fazê-lo sozinhos, morreriam à mingua. Ainda assim, impossível não me compadecer com o esforço dos bem-te-vis, minúsculos em comparação ao gavião, tentando, inutilmente, recuperar o filhote, fruto do esforço de muitos e muitos dias. O mais curioso e, ao menos para mim, inesperado, é que outros bem-te-vis se uniram e logo o gavião ficou em desvantagem, no que se assemelhou a um linchamento.
Depois, curiosa sobre o que havíamos presenciado, fiz uma rápida pesquisa pela internet e descobri que o bem-te-vi é uma ave corajosa e destemida e que para defender seu ninho enfrenta mesmo outras aves maiores, como gaviões e corujas. Aquele dia, na lei da selva, foi do gavião, no entanto. E daí volto às reflexões do início do texto. No passado eu somente seria capaz de enxergar uma face desse evento, de modo bem parcial. Hoje, entretanto, é impossível ignorar os dois lados do traço da vida.
Não cheguei, entretanto, no ponto do entendimento, da compreensão. Talvez nunca alcance esse lugar até. Ninguém deveria morrer para o outro existir. Ouso discordar desta lei, mas mesmo sendo advogada, desconheço o tribunal para dirigir um recurso, um pedido de reconsideração. No momento do outono da minha própria existência, busco a esperança de que possa haver razão, daquelas que a minha, hoje, desconhece.