Padarias são lugares afetivos para mim. Assim como fazendas. Na minha infância, esses dois lugares significam família. Passei a infância dividida entre correr descalça pela terra, procurando ninhos e ovos e observar o feitio do pão. De um jeito ou de outro, tudo terminava com bolos de fubá com goiabada ou sonhos com café coado no coador de pano. Sinto saudades, daquelas irremediáveis.
Assim, enquanto não há viagens no tempo, exceto aquelas que fazemos através dos nossos sentimentos, já que não tenho uma fazenda por perto, resgato essas memórias com aquilo que tenho a mão. Não é à toa que vivo cercada de todo tipo de plantas que consigo fazer crescer em vasos e que quase sempre há um pão quente, recém-saído do forno daqui de casa.
É engraçado como aquilo que vivemos nos encaminha, direciona o nosso olhar, desafia nossas lembranças. Onde quer que eu esteja, em meio aos estabelecimentos comerciais, sempre meu olhar é atraído para casas de pães. O aroma inconfundível me arrebata e me arremessa para longe, dentro de mim. Cheiro de pão assando e de folhas de eucalipto depois da chuva são alguns de meus portais mágicos.
Aqui perto de casa há várias padarias. Acabei conhecendo quase todos os funcionários de uma delas. Lá encomendo pequenos bolos, busco pão para lanches, sorvete para sobremesa, omeletes para o almoço, entre outras coisas. Em dias mais tranquilos, enquanto espero, converso com o pessoal.
E foi assim que fiquei conhecendo um pouco mais sobre as histórias de vida de alguns deles. Nem sei como sabem que sou advogada, mas me chamam de doutora e por isso já tive toda sorte de pedido de consultas rápidas, bem como acabei me tornando ouvinte de todo tipo de drama familiar. O meu lado cronista, é claro, nunca deixa passar uma boa oportunidade.
O ambiente de uma padaria já me é familiar e sentada no balcão, observo os ovos sendo misturados ao queijo na chapa e ali me deixo estar, ouvindo tudo atentamente. Ainda nesta semana um deles me contou que há cerca de cinco anos perdeu a esposa. A mulher, de pouco mais de quarenta anos, sentiu-se mal e, em segundos, nos braços dele atravessou a fronteira a vida. “Doutora, eu estou à deriva desde então” – disse-me ele, com os olhos marejados.
A atendente do caixa, ainda magoada com uma situação particular, responde-me assim que peço um chocolate para meu marido provar, fala sem pestanejar: “Não agrada marido não doutora. Depois ele te troca pela vizinha”. Nem tive tempo de responder e o padeiro, tirador de sarro, surge lá de dentro e diz que jamais trocaria a esposa por nenhuma vizinha. “Todas são muito feias”. Pego o chocolate, puxando pela memória como é a vizinhança de casa, por via das dúvidas.
Antes de sair, o chapeiro me fala algo que não consigo entender de pronto. Depois percebo que ele me mostra um caroço no pescoço, perguntando se eu posso olhar o cisto.
Levei alguns segundos para processar e, segurando a risada esclareci que não sou médica, mas advogada. Tive a impressão de que ele ia me dizer que olhasse mesmo assim, porque me pareceu confuso, mas saí de lá antes que tivesse que responder sobre pensão ou auxílio-doença.
Voltando para casa fiquei imaginando quantas conversas, confissões e fofocas meu avô José, padeiro, deve ter ouvido nas décadas em que esteve atrás do balcão. Uma pena que eu não possa mais me apropriar delas, pois agora também estão à deriva. Sigo colhendo os fragmentos que encontro, dando voz e ouvidos a outras histórias.