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flores

—Pode passar na nossa frente. Fica à vontade.

O caixa não era preferencial, mas foi natural cedermos a vez ao homem idoso, de constituição um pouco frágil, que levava nas mãos um vaso de orquídeas amarelas embrulhado em papel de presente.

Por duas vezes ele recusou a gentileza, com um sorriso e um gesto para que retomássemos nosso lugar, mas na terceira, após insistirmos, ele gentilmente aceitou.

—Essa flor vai para minha namorada – disse ele à moça do caixa – Nem sei se escolhi direito, porque procurei alguém para me ajudar, mas não encontrei ninguém. É bonita, não acha?

A atendente, com ar de cansaço, sorria simpática, sem se envolver muito na conversa. Como o caixa ao lado ficou vago, não consegui deixar de prestar atenção na cena.

Discretamente, notei que o homem bem provável há muito passara dos oitenta anos, mas andava firme e cheirava a perfume, o que lhe conferia um frescor.

Namorada? Será que ele havia recém-descoberto o amor? Seria um viúvo seduzido por alguma jovem que dele exigia presentes e outros agrados? Fosse como fosse, duas décadas escrevendo crônicas me ensinaram que para ter assunto é necessário prestar atenção no cotidiano, naquilo que acontece ao nosso lado e que quase ninguém repara.

—Vou levar agora mesmo para ela. Minha namorada. Sabe há quantos anos ela me aguenta? Sessenta e três!

Naquele instante eu soube que ali havia uma história de amor. Não o amor idealizado, dos filmes e dos ilusórios felizes para sempre, mas aquele amor possível, que enfrenta alegrias e tristezas, perdas e ganhos, que segue a trilha dos anos e das décadas. Duvido muito que em sessenta e três anos de união os dois somente tenham vivido coisas boas.

Primeiro porque a vida não é assim, mas também que as pessoas são falíveis e complexas são todas as relações.

—E sabe o que ela merece por me aguentar esse tempo todo? Uma medalha, minha filha, uma medalha – prosseguiu falando para atendente que olhava o relógio, impaciente.

Eu soube de pronto que um texto nascia ali, porque senti intensamente o desejo de registrar aquele fragmento de uma história de amor tão longeva, de uma mulher que merecia ser chamada de namorada após mais de seis décadas e de um homem que ainda se importava em escolher uma flor para ela.

Fotografei, assim, a imagem dentro de mim, com os matizes das emoções que me dominaram e embora eu não disponha das palavras certas para transmiti-la com precisão, eu sou capaz de assegurar que enquanto o homem saía com sua flor nas mãos, eu via o caminhar um jovem apaixonado.

Tive ímpetos de abordá-lo, querendo saber mais da história. Quem era ela? Como se conheceram? Tiveram filhos? Como se chamam? Dezenas de perguntas que obviamente ficarão sem respostas, porque não se pode invadir assim a privacidade alheia, ainda que, daquele momento em diante, eu sinta que a história de amor deles tenha passado a me pertencer um pouco, habitando esse lugar onde construo o que não sei, onde dou pernas à imaginação.

Um nó se forma em minha garganta, entretanto. Escrevo e lágrimas forçam a represa dos meus olhos. Desejo que ela o ature por 64, 65, 70 anos. Não acredito em amor perfeito, mas creio em encontros de almas, em parcerias de vida. Algumas despedidas deveriam, por compaixão do Criador, ser proibidas, porque as flores são mais belas quando recebidas em mãos, quando carregam e devolvem sorrisos.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e é uma coletora de histórias alheias – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br