images/imagens/top_2-1-1024x333.jpg

trico

Eu devia ter cerca de seis ou sete anos quando uma de minhas tias-avós, a Morena, como era conhecida, ensinou-me alguns pontos de bordado livre. Com agulha, linha e um pequeno bastidor, bordei em amarelo as minhas primeiras linhas. Dois anos depois eu me encontrei no tricô e no crochê, hobbys que venho cultivando desde então, deixando o bordado de lado.Quando me mudei para São Paulo, vinda do interior do estado, vendo os lindos trabalhos que a secretaria do escritório em que eu trabalhava bordava em ponto cruz, comprei linhas, tecidos, agulhas e me aventurei novamente, encantada com as formas que iam surgindo através da teia de linhas cruzadas com rigor.

Alguns anos mais tarde, aqui mesmo, na capital paulista, participei de workshops de bordado livre e, para minha surpresa, as salas estavam sempre cheias de alunas jovens, todas empolgadas com suas caixinhas de meadas, tesourinhas especiais e ideias de temas variados. Percebi, já naquela época, coisa de uns doze anos atrás, que tudo na vida é cíclico, inclusive o gosto pelas diversas expressões artísticas.

Há algumas décadas eu costumava ser a única ou uma das raras meninas entre a grande maioria de mulheres mais velhas. Os grupos de artesãs eram compostos de avós, tias ou mães que se dedicavam a pintar, tecer ou bordar roupas e acessórios para a família. Em uma de minhas lembranças estou cercada de idosas falantes e risonhas, comendo bolo e tomando chá, ouvindo e rindo sobre o que mal entendia enquanto crochetava bainhas em panos de prato, aos oito anos de idade.

Durante minha adolescência fui alvo de chacotas de muitas colegas por gostar das então chamadas artes das vovós, mas segui fazendo o que gostava, sem me importar com as gozações eventuais. Tempos depois, como hoje facilmente se constata, o jogo virou. Meninas bem jovens, descoladas, roqueiras, artistas, nerds, blogueiras etc., passaram a exibir com orgulho suas linhas, lãs e agulhas. Nunca foi tão moderno ser antigo.

Particularmente, sinto um inevitável gostinho de revanche. Ao mesmo tempo, fico feliz por ver resgatados os pontos, os livros, as lições de tantas mulheres que foram tecendo os caminhos que hoje bordamos com liberdade, nas cores que nos encantam, sem obrigações, sem amarras, sem formas pré-definidas. Inclusive, caminhos pelos quais alguns homens também trilham, embora ainda sobre eles pairem pré-conceitos idiotas e limitantes, como se segurar em uma agulha, criando mundos em cores e traços fosse uma questão de gênero ou de orientação sexual.

Enfim, sobre os ciclos, sou dada a eles também e, de tempos em tempos resgato práticas, porque se não sou a mesma pessoa, a arte em mim também é nova a cada dia, a cada linha. Voltei ao bordado uma vez mais, agora acompanhando os inúmeros cursos e vídeos disponíveis na internet. Descobri a pintura com agulha, em que as linhas brincam de ser lápis e vão construindo formas em relevo sobre o tecido. Também aprendi que é possível bordar em papel ou mesmo em uma folha seca. A arte é sempre libertadora e amplia nossos próprios contornos.

De tanto fuçar, fui parar em dois grupos virtuais sobre bordado e lá fui descobrindo as histórias de mulheres e de homens que seguem bordando suas dores, suas alegrias, suas esperanças. Trocamos riscos, traçados e, quase à moda antiga, seguimos preenchendo vazios com cores, lidando com agulhas que podem ferir num descuido, mas que nas mãos de quem se permite, fazem arte, criam beleza, fazem surgir a vida.

Cinthya Nunes, jornalista, advogada, professora universitária, pinta e borda – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo. /www.escriturices.com.br