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Nem sei ao certo quantos textos já escrevi sobre o sabiá laranjeira, essa ave cantora e símbolo do Brasil. Inspirou compositores e poetas que o eternizaram e o tornaram famoso. E continua sendo fonte de inspiração. Eu mesma, todos os anos dedico ao menos uma crônica para a majestade alada.

Não é uma ave que ostente beleza ímpar, entretanto, vestido de penas marrons e alaranjadas, cor de ferrugem. Parece feito de barro, com olhos meio arregalados, atentos. Notável pelo canto longo, melancólico, aflautado, canta como quem chora de alegria ou ri de tristeza. Seu canto alcança incríveis 70 decibéis e pode ser ouvido em até um quilômetro de distância.

Em 2013 registrou-se na cidade de São Paulo um fenômeno inusitado. Os sabiás inverteram o dia pela noite. A cantoria que se fazia ouvir nas primeiras horas da manhã e da tarde passou para as madrugadas. O fato incomodou muita gente, mas a pobre ave alterou seu comportamento para se fazer ouvir pelas pretendentes e pelos filhotes em meio ao barulho extremo da metrópole. A despeito das reclamações, a mudança veio para ficar.

Particularmente acho lindo e sendo eu também uma criatura de hábitos noturnos, sinto-me privilegiada por escutá-lo. Tomara que as futuras gerações também o possam. Que as árvores não sejam todas extirpadas em nome e por conta das grandes construtoras e de seus interesses quase nunca conservacionistas, porque onde há árvores, as aves se fazem chegar.

Por ora, para minha alegria, o sabiá é um pássaro abundante na capital paulista. Ao menos no meu bairro há muitos deles, que se banqueteiam com as inúmeras árvores frutíferas que seguem resistindo aos tantos prédios novos. Passeiam livremente pelas calçadas e residências. Alguns são meus visitantes contumazes, dividindo com as maritacas as frutas que coloco na sacada todas as manhãs.

Aqui na nossa rua já resgatei filhotes que caíram do ninho antes da hora, bem como já vi nascer e crescer outros. Atualmente com várias árvores, nossa rua é razoavelmente sossegada e ninhos de diferentes aves podem ser encontrados por olhares mais atentos. Azulões, rolinhas, cambacicas, além dos sabiás, resolvem se reproduzir por perto, provando que a natureza faz o que pode para resistir.

O estranho é que desde meados de abril temos escutado o cantar choroso do sabiá, que continuou se estendendo por este mês de maio. Normalmente o canto do sabiá marca o início da primavera, da estação apaixonada das plantas e animais. Assim, aqui em casa passamos a desconfiar que esse sabiá está meio desregulado. Fui até pesquisar e todas as fontes que encontrei colocam o período de reprodução dos sabiás entre setembro e janeiro. Mas esse moço em especial anda cantando demais e numa rápida investigação confirmei minha suspeita. Em uma das árvores da rua um casal de laranjeiras fixou moradia, construindo um ninho.

Tal qual ocorreu há dez anos, estará o sabiá promovendo uma nova mudança de hábitos? Não tenho dados para saber se tem ocorrido a mesma coisa em outros lugares, mas aqui, em uma pequena rua de um bairro da cidade de São Paulo, uma ave apaixonada subverteu as tradições, as prescrições do instinto e decidiu que sempre é tempo de ser feliz, de viver uma história de amor. Sua serenata tem invadido as madrugadas que aos poucos vão se tornando frias e torço para os filhotes nascerem e crescerem antes que a temperatura caia demais.

Vou seguir observando e investigando, mas sem alardes, para que ele continue ali, meio incógnito. Enquanto isso, temos o privilégio de ouvir o concerto noturno, cuja melodia nem precisamos entender, apenas sentir.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e está intrigada – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br