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 pobreza

A menina, descalça, com os pés encardidos, brinca de pular a sujeira que há na sarjeta. Na calçada, as divisórias do concreto se travestem de amarelinha, mas o céu não se avista nem com os olhos da inocência que lhe resta. Em volta há outras crianças, todas igualmente imundas e maltrapilhas.

Cachorros sem raça definida, de grande porte, amarelos, pretos e rajados dividem a comida que se avista pelo chão ou em vasilhas abertas, expostas às moscas. São animais cujo tamanho sela o destino e a fome. São vigília, afago, companhia e solidão. Um gato ou outro igualmente se vê em meio ao caos, seguros por coleiras que os protegem da falsa liberdade.

Todas as cores de pele vestem as pessoas, excluídas de tantas formas que sequer sei identificar. O cheiro é perturbador, porque revela bem mais do que a falta de banho, eis que ali falta tanto que até sobra. O desemparo, quando se alia à desesperança e ao abandono, produz um aroma inconfundível, daqueles que nem mesmo a água é capaz de lavar, porque certas manchas são por dentro, indeléveis e invisíveis.

Há barracas, cobertores velhos, roupas amontoadas, lixo, urina, tudo e nada espalhados para todos os lados. Poderia ser uma cena de guerra e de fato, não deixa de ser. Batalhas diárias com a fome, com o medo, com o crime, com a prostituição, com a violência, com o abuso e com a vida e o avesso dela.

Passar por ali me assusta, mas me fere também. Inegável o privilégio da minha existência em face ao que meus olhos veem. Estou em plena praça da Sé, no marco zero de São Paulo, mas talvez não esteja, metaforicamente falando. A polícia é presente para assegurar a integridade das pessoas. De quais delas, no entanto?

Seguro minha bolsa junto ao corpo e vestida com meu traje de advogada, flagro olhares que não decifro. Algumas mãos se estendem diante de mim, pedindo dinheiro que sei ter diferentes destinos. A prudência me diz para não abrir a carteira naquele local, então balanço a cabeça em negativa e sigo, desviando-me daqueles que ainda dormem, entregues ao chão duro e ao entorpecimento do álcool e das drogas.

Tento sair dali o quanto antes, mas lá fico durante horas, semanas, mesmo depois de estar longe. Impossível esquecer ou ignorar. Não me ocupo de julgamentos, nem mesmo penso que sobre todos a injustiça tenha recaído. Quem é que sabe os caminhos que cada um é chamado ou forçado a trilhar?

Ouso imaginar o que a noite faz daquele lugar e só de pensar eu estremeço. Por ora o outono somente refresca o ar, anunciando o que está por vir. O inverno aqui é ardiloso, inofensivo para quem tem onde viver, cruel para quem tenta fazer o mesmo. Não gosto da cena que o conjunto de barracas forma, entretanto. Ressinto-me do fedor, do lixo, da insegurança que transforma locais históricos em campos de horror.

Alheio, o horror me atinge de muitas formas, no entanto. Que fado é esse que, entoado em linhas incertas, conduz a paradas tão distintas? Ali, amontoados em desgraças, estão meus semelhantes, meus irmãos, ainda que eu os tema, ainda que carreguem fardos pesados, nebulosos ou condenáveis. Consciências também condenam e quem as pode acessar ou julgar?

Não vejo soluções a curto ou médio prazo e tampouco sei o que se poderia chamar de solução, exceto o renascer, talvez, para uma vida menos desigual. A esperança, entretanto, desconheço onde mora, mas sei que não é ali, sob os olhos e o badalar dos sinos da Catedral da Sé.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e, vez ou outra, fica sem palavras – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./ www.escriturices.com.br