images/imagens/top_2-1-1024x333.jpg

caramujo

Ele apareceu do nada. Ao menos que eu saiba. Em pleno feriado de Páscoa e ele estava ali na frente de casa, mais especificamente na janela da sala. Enorme, cor de caramelo, o caramujo parecia um personagem de livro infantil, daqueles ilustrados. Particularmente, acho bonitos, parecidos com seres de outros mundos.

Olhei para todos os lados, no desejo de saber se ele estaria sozinho ou acompanhado de outros da mesma espécie, mas em princípio era uma criatura solitária, do tipo que carrega a casa nas costas. Tirei fotos para registrar o inusitado dele ter aparecido aqui, nesta rua sem terra ou jardins, repletas de casinhas antigas. Como gosto de dar nomes a quase tudo e na impossibilidade de conferir meu acerto, eu o chamei de Tenório. Algum motivo para isso? Na verdade, nenhum. Apenas ele tinha uma carinha boa de Tenório e assim ficou.

Decidi que não mexeria com ele e que deixaria a natureza seguir o curso que quisesse. Durante uns dois dias ele ficou por ali, na dele e eu, na minha. Torci apenas para que ele fosse embora do mesmo jeito que chegou.

Não o vi mais por quase uma semana e pressupus que tivesse realmente se evadido do local ou até sido levado por alguém, talvez para outra chance de vida, talvez para morte. Alguém poderia alegar que se trata de uma praga, mas até aí, que me desculpem os antropocentristas, praga por praga os seres humanos também são, capazes, sobretudo, de estragos bem significativos.

Além do mais, uma criatura sabe que foi classificada pelos posseiros do mundo como praga? Ou seja, a praga sabe que é praga? E se sabe, aceita seu fim, seu descarte, por ser considerada inferior? Sem dizer que, caso seja uma espécie dita invasora, até onde me consta foi introduzida de forma indevida em habitat não natural exatamente por ação e irresponsabilidade humana.

A conta fecha fácil na minha aritmética. Eu não tenho qualquer responsabilidade direta sobre o aparecimento do Tenório, tampouco o convidei para o chá da tarde. Sei que assim como várias outras criaturas, pode vir a causar doenças e não estou aqui incentivando ou sugerindo nada.

Apenas que isso me provoca reflexões. Os seres humanos causam desajustes ambientais e depois tratam os frutos dessas ações como criaturas cujo objetivo de vida é causar o mal para humanidade. É uma hipocrisia e tanto, parece-me. Fiquem tranquilos, no entanto, os leitores mais preocupados, porque não vou adotar o Tenório como meu mais novo mascote, tampouco arriscar a minha saúde ou a de outras pessoas. Só não aceito sobre as minhas costas o dever de dar fim nele, porque não tenho coragem.

Hoje, dia que escrevo esse texto, eu o vi novamente na frente de casa, quietinho perto do canteiro de flores, a um passo de ser pisoteado por quem passasse por ali. Com o auxílio de uma sacola de plástico, como todas as precauções para evitar o contato direto, eu o tirei do meio da calçada e pude sentir mesmo que o animal se encolheu diante do toque do plástico, tentando se manter grudado ao chão. O fato é que tudo que vive quer viver e nisso, sejamos gente, bicho ou “praga”, somos muito parecidos.

Algumas questões de saúde pública desafiam debates éticos e não permitem soluções simplistas e ineficazes. Políticas públicas de caráter local, regional e nacional precisam ser estabelecidas para proteção da população e das plantações, mas, segundo creio, não se pode fingir, o tempo todo e para sempre, que nada além da vida humana importa.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e dá chance até para pernilongos fugirem – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./ www.escriturices.com.br