images/imagens/top_2-1-1024x333.jpg

celular

1ª testemunha ouvida pela polícia: Osmar, cozinheiro

Sim, eu vi quando a mulher atravessou a rua. Não sei o nome dela, não senhor. Só sei que comprava feijoada aqui todo sábado. Idade? Uhum, nova ainda. Uns cinquenta e poucos? Tava sempre bem arrumada, com essas coisas de maquiagem na cara, então num dá muito para saber. Mas era bonitona.

Não sei se ela tem família aqui no bairro também. Só posso dizer que vi o acidente. E eu vi porque tava fumando ali na frente. Era hora do meu intervalo e gosto de olhar o povo que passa. Aqui neste lugar, neste bairro de gente chique é tudo diferente de lá de onde eu moro, sabe? Lá o povo grita na rua o tempo todo. É criança e cachorro para todo lado.

Parece que todo mundo gosta de ficar na rua ou não tem o que fazer dentro de casa. A gente nunca tem silêncio lá. Aqui as pessoas falam baixo e se alguém grita todo mundo assusta. Acha que é bandido, assalto.

Ah, claro, desculpa. Tô falando demais, né?

Então, a dona vinha por ali, de sapato de salto. Eu vi o busão vindo do outro lado, mas tava longe e achei que ela tinha visto também. Só que daí ela atendeu o telefone e acho que não viu o buraco. Foi quando o sapato dela enganchou e ela caiu. Nessa hora eu gritei, porque o motorista do coletivo não ia conseguir enxergar a mulher no chão, no meio da rua.

O que eu gritei? Nem lembro, mas gritei forte! Só que minha voz sumiu porque tocou o sinal da escola aqui do lado. Era hora da molecada sair. Já tinha até fila de bacana para pegar os filhos.

Quando ela viu o ônibus ela tentou correr, desesperada. Moço, doutor, ela ia se salvar, mas voltou para pegar o celular e daí foi a tragédia. Uma gritaria das crianças da escola e dos carros que bateram por detrás do coletivo.

Se eu tentei ajudar? Claro. Eu gritei! Ela que não ouviu, né? Agora é uma cliente a menos.

2ª testemunha – João, adolescente

Fala sério! A véia era mó louca. Idade? Sei lá, mais de quarenta, cinquenta? Era véiona já.

Não conheço não. Nunca nem vi. Eu moro aqui perto e passeio com o Lulu todo dia nessa hora. Aproveito para dar uma olhada nas mina que sai da escola. De olho nas novinhas..
Minha idade? Por quê, é proibido olhar? Eu sou de menor ainda tio!

Ah tá, desculpa, seu policial. Então, com todo respeito aí, eu tenho só dezessete. Sô pedófilo não! Bom, o Lulu inventou de cagar bem aqui na esquina, ali perto do restaurante. Eu tava sem papel para catar, mas aqui no bairro se a gente deixa bosta de cachorro na rua leva o maior esfrega do pessoal.

Então eu fui pedir um guardanapo ali no restaurante. O cozinheiro ali de fora, fumando. Eu, se fosse a polícia dava uma conferida no bagulho que ele fuma. Mas num falei nada, tá? Ele é das quebrada, que já me falaram.

Então eu vi quando a véia atravessou a rua. Tava olhando para o celular, apertando os olhos e esticando o braço, igual minha mãe faz quando tá sem óculos. Nem viu o ônibus, tá na cara.

Eu ouvi quando o cozinheiro gritou: Merda!

Daí achei que era comigo, por causa do Lulu. Catei e fui jogar no lixo. Eu tava de costas quando ela foi atropelada, então só vi o celular voando. Caiu bem na minha mão! Muitoooo loco!!!

Todo mundo gritando que nem maluco e o motorista do ônibus com a mão no peito, branco pra caralho. O que eu fiz com o telefone? Tinha alguém falando, perguntando se tava tudo bem. Sei lá o que me deu. Falei que ela não podia falar e ligava depois, ué! Desliguei na cara. Acredita que não aconteceu nadinha com o telefone? Nem riscou a tela. Iphone 13, cara. Ops, seu polícia. Cadê o telefone? Sei não. Deixei com o cozinheiro. Olha ele ali, indo embora correndo...

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e pode ser velha, a depender do observador – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br