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alfaiate

Uma pequena mala já bem gasta, algumas sacolas e um cobertor popular. Sentado no ponto de ônibus há dias, ele permanece como se esquecido de partir, esperando por algo ou alguém que nunca se faz chegar.

Era alfaiate, segundo soube. Perdeu o emprego e, sem família e recursos, acabou na rua, despejado do quartinho e das esperanças que ocupava. Desde então sobrevive pelo bairro, abrigado nas estruturas de pontos de ônibus. Se bebe ou usa drogas, não demonstra. Possui semblante altivo, embora humilde. Parece constantemente mirar o horizonte, embora eu não saiba interpretar aquele olhar direcionado ao nada.

Quando eu soube da situação dele, fiquei profundamente consternada e até mesmo envergonhada diante do que se reduz a existência humana. Desconheço as circunstâncias que o levaram até aquele lugar. Nada sei (e quem pode?) sobre merecimento ou azar e nem acredito que a vida siga essas regras de forma tão rigorosa, mas de toda forma, agora, é triste demais vê-lo naquele lugar, que é também lugar nenhum.

Tenho a sensação de que ele espera não ser notado, pois quem o vê pode crer se tratar de um passageiro, de quem anseia pelo passar indolor das horas, como quem cumpre, conformado, uma tarela da qual não pode se livrar. Algumas pessoas buscam ajudá-lo com alimento e algum dinheiro, mas ele não pede nada e penso que nem para o Criador o faz. Eu me revolto por ele, mas não sinto que ele se comporte da mesma forma.

Assim como ele, tantos outros devem ter começado do mesmo jeito, em um se perder aos poucos, lutando para conservar a dignidade e a lucidez. Coloco-me no lugar dele, hipoteticamente, e só posso sentir desemparo. Como se sobrevive assim, sem nem ao menos ter onde dormir ou descansar? Não posso, para minha sorte e também para meu pesar.

Falível e humana, não raras vezes noto aquilo que me falta, esquecida do que me sobra. Olhando para ele, para aquele universo que se resume na mínima bagagem dobrada e empilhada de modo organizado, dou-me conta de quanto a existência humana é fútil. Não precisamos de quase nada do que nos cerca, de fato, mas é a nossa pequenez que nos faz querer agregar coisas, esquecidos de que sequer somos matéria.

Mesmo escrevendo todas as semanas há mais de vinte anos, a ausência de palavras para descrever o que gostaria de transmitir, é também parte das minhas limitações. Limitações que se estendem a não poder fazer muito por ele. Ajudo como posso e isso me parece pouco demais.

Todos os dias vejo pessoas em situação de rua e embora isso sempre tenha me incomodado e inspirado vários outros textos, algo naquele homem me chamou de volta a um lugar do qual me afasto para não sofrer. Não que me orgulhe disso, mas ficar alheia, vez ou outra, permite que eu prossiga.

Talvez seja exatamente isso, penso agora. O olhar daquele homem, no qual eu mesma me perdi, tão sincero e resignado, tão humilde, mas tão poderoso, capaz de me ensinar tanto, de me mostrar que, de um dia para outro podemos ser pouco mais que uma pilha de roupas ou de um amontoado de pó. Naquele ponto de ônibus, enquanto ele aguarda, eu acabo de (me) partir.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e acredita em chegadas que são pontos de partida – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br