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ipe

O chão está forrado delas. Juntas, formam um tapete de tom entre rosa e roxo, cobrindo de vida o asfalto, as pedras e os carros da pequena rua onde moro. Imenso, o ipê está florido como nunca o vi antes. Sobrepondo-se aos telhados dos sobradinhos, nessa pequena área ainda não dominada por arranha-céus, parece um ramalhete, contrastando com o azul desses dias claros.

Não sei precisar há quanto tempo está aqui, mas pelo relato de alguns moradores, suponho que tenha sido plantado cerca de quinze anos atrás. Por várias vezes foi ameaçado de morte, no entanto. Vítima da cisma de alguns e da implicância gratuita de outros, já esteve com as motosserras rugindo próximas a ele por algumas vezes. Nas últimas vezes, com ajuda de amigos, consegui impedir, embora nunca saiba até quando.

Abrigo de muitos pássaros, sombra para os passantes, o majestoso ipê já foi acusado de ser perigoso, pois, segundo alguns, pode cair a qualquer momento durante chuvas ou ventos fortes. Não me parece, mas como sou leiga, chamei as autoridades competentes, as verdadeiras e não os embustes que quiseram levar a melhor sobre a árvore e, segundo laudos, ela é sadia.

Por óbvio que não desejo que a vida de ninguém seja exposta ao risco, tampouco o patrimônio alheio, mas o que não aceito sem questionar é a sanha por colocar abaixo uma árvore que, até agora, nenhuma autoridade confiável atestou ser um risco real. Antes das novas árvores que recém vieram para nossa rua, ela e meu pequeno e velho ipê amarelo eram os poucos sobreviventes de crimes ambientais que ceifaram abacateiro, coqueiro e laranjeira, entre outras espécimes.

Durante meses, estivesse eu fazendo o que fosse, se ouvisse barulhos estranhos, já corria até a calçada ou sacada para ver se, na surdina, estavam tentando cortar a árvore novamente. Por conta das árvores da rua fui até a Subprefeitura, fiz abaixo-assinado, mobilizei amigos malucos (do melhor tipo de doidos que há) e defensores do verde em geral.

Fiz tudo que estava ao meu alcance. Por ora a árvore está lá, mas sei que eu não estarei aqui o tempo todo e que para além de eventuais moradores, há ainda a atividade predatória dos empreendimentos imobiliários que, inclusive, aos poucos destroem a identidade do bairro e o verde dos quintais de casas antigas.

Os ipês e eu temos vivido, a propósito, um longo caso de amor e já os retratei em vários textos. São mestres dedicados aos alunos que se dispõem a observá-los, inclusive. Há neles o tempo de se despir, de perder todas as folhas, restando descobertos os galhos que precisam de algum sofrimento para fazer, pelo trabalho invisível das raízes, nascer os brotos e as flores. Os ipês me lembram de que a beleza é sempre efêmera e que, no dia seguinte, toda uma gama de flores já estará no chão, sucedidas pelas irmãs que sabem ter o mesmo destino, mas que, ainda assim, não se intimidam.

Viver, por certo, é um risco, sejamos gente, árvore ou bicho. Talvez, se tivermos sorte e alguma ajuda, possamos fincar um pouco mais nossas raízes, mesmo enquanto nossas folhas caem. As motosserras também espreitam, gostemos ou não. No fim das contas, todos esperamos pelas flores, ainda que nem sempre saibamos reconhecê-las entre o gris de nossos tempos.


Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e espera, todos anos, pelas floradas dos ipês – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./ www.escriturices.com.br