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sono

Às vezes eu o persigo, mas na maior parte do tempo, é ele quem me domina. Minha relação com o sono é meio esquizofrênica, admito. Poucas vezes estivemos divorciados e, assim, houve mesmo um tempo em que sofri de certa insônia. Naqueles dias, era com desespero que aguardava pela chegada do meu amigo quase inseparável, vendo as horas se sucederem e madrugada ir se transformando em dia.

Quando o sono resolve se apossar de mim, por outro lado, tudo muda de figura. Certa vez, com um casal de amigos, fomos assistir a uma apresentação de música clássica. Era tarde da noite, estava muito frio e aquela sexta-feira fechava uma semana bem atribulada. Meu intento era o de prestigiar os músicos talentosos que se apresentavam, mas naquele misto de silêncio e som, fui sendo tragada para outro mundo e posso afirmar que foi tudo um sonho, literalmente.

Em outra ocasião, depois de ter comido algo que me rendeu vergões vermelhos de alergia, tive a brilhante ideia de aceitar um antialérgico oferecido por uma amiga, meia hora antes de uma sessão de cinema. Fomos assistir ao filme Inteligência Artificial, de 2001. Tudo de que me lembro é do começo e de alguns flashes do final. Enquanto durou minha pipoca e meu refri, fui capaz de manter os olhos abertos, mas com minhas pálpebras feitas de chumbo, Morpheu me tragou para um mundo onírico, do qual só retornei quando as luzes se acenderam.

Recém-formada, anos antes, me inscrevi em um cursinho preparatório para concursos. Na primeira aula, logo depois do almoço, cheguei atrasada e só achei lugar bem na frente, quase colada ao professor. Foi uma experiência surreal descobrir que sim, é possível enxergar triplicado. Em dado momento vi três professores, todos gêmeos idênticos e todos falavam cantigas de ninar. Fiquei tão envergonhada que após o intervalo, de rosto lavado, de três cafés expressos e uma dor de cabeça que ia chegando, tratei de achar um lugar no fundão da sala, onde o sono é livre e não é julgado.

Quando precisei fazer uma endoscopia e voltei para casa ainda sob o efeito da sedação leve (?) que é padrão naquele tipo de exame, falei ao telefone com o jovem médico que havia pedido o exame e resolvi, no dia seguinte, nunca mais voltar ao consultório dele, porque a vaga lembrança que tenho sobre o que falei com ele já era suficiente para tal medida drástica. Com sono sou um perigo para mim mesma.

Sofrendo de crises de labirintite desde criança, preciso tomar eventualmente um remédio específico, cujo efeito colateral perceptível é o sono. Mas não é qualquer sono, não. É um sono que parece inutilizar o botão de controle dos braços, das pernas e da língua. O mais complicado é que fico com efeito rebote, sentindo sono no dia seguinte. Nesse momento em que escrevo este texto, estou sob esse efeito e por certo o texto que o leitor lê agora é a versão revisada, com o corte das mil bobagens que devo ter escrito enquanto tentava dar foco nas letrinhas da tela com apenas um olho aberto.

Com o notebook no colo, já dormi e acordei umas três vezes, grata ao santo protetor dos incautos por não ter ocorrido o pior. Letras apertadas ao acaso já encheram a página com suas repetições acusatórias e delatoras. Ainda bem que é só deletar. Em outros tempos, ao contrário, o nanquim derramado seria o algoz do papel antes branco. Isso ou estaria todo babado. Quem nunca?

 Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e releu o texto muitas vezes antes de enviá-lo à redação – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br