Venho escrevendo crônicas há mais de vinte anos, semanalmente. Normalmente, quando comento tal fato com alguém, perguntam-me como faço para ter assuntos novos para tantos textos, como se fosse algo que demandasse algum esforço extra ou alguma qualidade especial. Sinto decepcionar quem pensa assim. Em verdade, trata-se apenas de uma coisa: observação. Explico-me.
Nunca vou a lugar nenhum sem observar tudo ao meu redor. O segredo, talvez, seja prestar atenção nas coisas certas, naquilo que, de ordinário, não se costuma notar. Acredito ser esse o grande trunfo do cronista: possuir olhar que se direciona para lugares, pessoas ou situações inusitadas. E assim, como a vida não se repete, como há coisas novas o tempo todo, há sempre assunto que possa ocupar de modo razoavelmente interessante, as linhas de um espaço em branco.
Tentarei explicar exemplificando. Hoje mesmo, logo pela manhã, saí como minhas cachorras para uma breve caminhada. Prefiro os fins de tarde, mas diante de dias chuvosos, aproveitei o intervalo ensolarado que se apresentou antes das nove horas. Evito sair muito cedo porque as duas fazem um escândalo assim que o portão é aberto e elas ganham a rua. Saem latindo como loucas, como se quisessem avisar aos demais cachorros da rua que a liberdade lhes pertence, ainda que momentânea.
Pois bem, saímos na direção de sempre e para minha tristeza vi, esmagada no meio da rua, uma rolinha. Tivera a cabeça esmigalhada e a cena era triste, principalmente porque outras duas a olhavam do outro lado da calçada. Muitas delas vem comer as sementes e frutas que coloco todos os dias na sacada e, mesmo sem poder confirmar isso, tive a certeza de que era uma das “minhas”. Teria sido atropelada por um carro? Nossa rua nem permite que veículos transitem em alta velocidade, mas por certo algo pesado passou por cima da pobrezinha. Do meu modo de ver, ninguém, gente ou bicho, deveria morrer assim, entre um voo e outro.
Prossegui com as cachorras e logo no quarteirão seguinte encontrei, caído na sarjeta, quase com a cabeça na rua, um homem, já idoso. Assim que me aproximei outras pessoas também o fizeram e foram verificar como ele estava. Com as mãos no celular uma mulher já chamava uma ambulância. Pelo que pude notar, estava alcoolizado, mas era inegável que havia caído e que não estava nada bem. Caísse ele na frente de um dos muitos ônibus que passam naquela rua, estaria na mesma situação da rolinha. Talvez ele beba para ganhar asas, pensei.
Segui porque nada poderia fazer que já não estivesse sendo feito. Contornei o quarteirão e de longe vi algo que me chamou atenção. Aproximei-me de uma árvore pequena que fica numa ilha entre duas ruas e confirmei minha primeira impressão. Ali estava um pessegueiro carregado de frutos ainda verdes, mas que em breve amadurecerão. E o curioso é que achávamos que se tratava de uma cerejeira japonesa, porque há pouco mais de um mês, com muitas flores rosadas, assim nos parecia. Fui até pesquisar no google e, para olhos leigos, são muito parecidas na floração. Agora serei obrigada a passar por lá mais vezes, já que quero muito colher um dos frutos maduros, caso eu os alcance antes dos muitos pássaros que vivem na região.
E foi assim que, encantada com o pessegueiro, não vi que um cachorro grande e bravo que vive no bairro, estava dentro do carro de sua tutora, espiando com cara de poucos amigos, através da janela negligentemente deixada aberta. Nada o impedia de pular dali e atacar minhas cachorras, como de fato fez há pouco tempo com a de um vizinho. Em tempo de evitar uma tragédia, puxei as duas de volta e desvie o mais rápido que pude, rezando para não ser seguida pelo cachorro malvadão.
Daí volto ao tema inicial desse texto: como não ter assuntos novos a escrever? A vida é doida e surpreendente e tudo isso acima foi vivenciado em apenas quinze minutos do que deveria ser um simples passeio matinal ao lado de Gigi e Juju. Todo dia é uma página em branco a ser preenchida. Só depende das cores em que você a escreve...