A menina tinha nome de gente grande: Sebastiana. Era, no entanto, bem pequena, com pouco mais de sete anos. O apelido, porém, era de gente miúda: Nena. Órfã de pai, foi deixada pela mãe aos cuidados da madrinha, mulher de posses, para que tivesse chance de uma vida melhor.
Nos anos vinte não era propriamente um escândalo que uma criança de pouca idade fosse tratada como serviçal, sobretudo em se tratando de alguém de família sem recursos. Assim, Nena, cuja mãe esperava que seria tratada como filha, como hóspede, foi incumbida de muitas e pesadas tarefas domésticas, sequer frequentando a escola. Embora seja compreensível e esperável que se lamente esse fato, essa não é uma história sobre a tristeza.
Uma das tarefas de Sebastiana na casa da madrinha era preparar o feijão que era servido na hora do almoço aos muitos empregados, peões e familiares que circulavam por lá. Recebeu instruções de que deveria cozinhar o feijão em uma grande panela que quase sempre estava sobre o fogão a lenha.
Como quase todas as comidas da época, essa deveria ser temperada com banha de porco, que ficava guardada em um pote na cozinha. Acontecesse o que acontecesse, o pote com banha deveria ficar muito bem fechado, pois os ratos famintos eram atraídos pelo cheiro. A menina tentava se manter atenta às instruções, porque a madrinha era brava e Nena não queria deixá-la irritada e correr o risco de não ter nem onde dormir.
Em uma noite qualquer, de muito calor, Nena estava cansada e se distraiu observando, pela janela da cozinha, uma estrela cadente. Naquela ocasião o pote de banha ficou mal fechado e um roedor curioso e azarado escorregou para dentro dele, ficando mortamente preso. Na manhã seguinte, a menina acordou assustada e tratou de ir até a cozinha para tentar evitar um estrago maior.
Por sorte foi a primeira a chegar e enquanto os tímidos raios de sol iam se espreguiçando, Sebastiana sentiu o chão faltar aos pés quando avistou apenas o rabinho do rato em meio à banha de porco. O medo da madrinha foi maior do que o nojo e assim que os demais empregados chegaram para preparar o café da manhã já não havia mais nenhum sinal do rato.
O problema é que quase todas as comidas naquela casa eram feitas com banha de porco, aquela banha de porco que deveria ser guardada a sete chaves, a salvo de roedores e ao encargo de uma menina de sete anos que queria ser livre para brincar e parar ser criança. Contar a verdade seria o mesmo que pedir para apanhar e então Sebastiana preferiu guardar para si o destino do pobre rato.
Muitas décadas depois minha avó Nena, incapaz de ser alcançada pela fúria da madrinha, contava, entre risadas, que ficou meses sem comer feijão e tudo o mais a que fosse acrescentada a banha de porco. Dizia, caso fosse perguntada, que passava mal com “coisas de porco”, que tinha alergia. Inexplicavelmente, ficou curada assim que o pote de banha foi substituído por outro com banha nova, tratando de se certificar, todas as noites, se a tampa estava bem fechada.
Dezessete anos já se passaram desde que a Dona Sebastiana nos deixou, mas sempre que como feijão fora de casa, tenho a impressão de ouvir a risada dela e me pergunto se por aí também fecham bem as tampas.