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“Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos” – Clarice Lispector

Todos agora usam máscaras. Ou melhor, quase todos. Alguns se recusam e pronto. Nada os convence da necessidade, da proteção conferida por ela. Fora a questão da saúde, as máscaras permitem uma estranha liberdade. Ninguém mais é obrigado a dar sorrisos forçados. Dá até para mostrar a língua, por exemplo, algo antes impensável em lugares públicos.

O Seu Zé da Feira, homem de aparência bruta, mas de percepções delicadas, distribui piadas a todos que se achegam de sua barraca de batatas. Com voz alegre, tem o sorriso intuído. Gosta de fazer gracinhas e por certo como estratégia de vendas, chama todas as mulheres de moça, agradando as menininhas e as nem tão meninas.

Estou já há um ano sem ver o sorriso do Seu Zé. Dele e de praticamente todo mundo. Olhar nos olhos nunca foi tão necessário. É passada a hora dos fabricantes de celular mudarem essa coisa de identificação facial. Deveriam mirar nos nossos olhos, talvez até com base nas piscadas. Uma, desbloqueia, duas seguidas, disca para o primeiro número dos contatos e assim por diante.

Na semana passada Seu Zé exibia uma máscara com a imagem da boca do Coringa. Aquele bocão sinistro chamava atenção de clientes e de estranhos. Também achei no mínimo curioso.

—Tá de cara nova Seu Zé?
—Olá Moça! Bom variar de vez em quando né? Já cansei da minha fuça. Só não me canso da sua.
—O senhor sempre gentil! Gosta do filme do Coringa? Esse último?
—Ah filha, nem sei direito o que você tá falando. Ganhei essa máscara do meu filho. Ele sentia saudades de me ver rir.
—Esse sorriso não é dos mais felizes, eu acho.
—E o de alguém é de verdade? Tudo tão doido. Pelo menos não fico com aquele pano preto na boca o dia todo. Parece que a boca tá de luto né? Vai querer batata baroa hoje?

Me afasto dali com a sacola cheia de batatas e a cabeça, de minhocas. Talvez eu devesse arrumar uma máscara dessas para mim também. Espelharia grande parte razoável dos meus sentimentos. Quem sabe até meu celular, quase um desconhecido, pudesse me reencontrar.

Se antes pensávamos o que se passava pela mente dos outros, agora questionamos também o que se passa abaixo das máscaras. Quantas emoções se camuflam sob camadas de tecido e TNT? Nada mais é como parece ou costumava ser. Somos quase todos palhaços, ocultos sob máscaras de sorrisos assustadores. Temos sorrido em público do que não sorriríamos quando ficássemos sozinhos, com nossos rostos expostos à verdade.

Expostos ao extremo nas redes sociais, cada dia parece haver menos de nós presencialmente. Medimos o que fazer, sorrir, falar. Nossas máscaras chegaram bem antes do vírus. Agora só ganharam a cor e a forma de uma imensa boca sádica.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e prefere máscaras com focinhos de cachorros – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br