A notícia de uma menina de 10 anos grávida em decorrência de estupro e outros abusos praticados pelo próprio tio trouxe à tona uma série de discussões, mobilizando diversos segmentos da sociedade. A questão, extremamente complexa, ao meu ver, requer uma reflexão que vai além de tipificar o tio como estuprador sórdido, atributo que sem dúvida lhe cai bem.
Por óbvio que qualquer sociedade evoluída tem que criminalizar e repugnar o ato monstruoso de submeter uma criança de seis anos, idade que a garota tinha quando do início dos abusos, a práticas sexuais. Uma criança não é uma mulher em tamanho pequeno, mas um ser humano em formação, tanto física quanto psicológica. Juridicamente, seja civil ou penal, é incapaz e não pode ser responsabilizada por absolutamente nada aos 10 anos de idade.
Segundo as notícias que li, o tio ameaçava a sobrinha, dizendo que iria matar o avô caso ela o denunciasse, caso contasse o fato a alguém. Órfã de mãe e criada pela avó, a menina restou silente, suportando, nesses quatro anos, os horrores indizíveis do estupro. Violentada por alguém de seu convívio familiar, por alguém que deveria ser como devem ser os bons tios, um segundo pai, só ela é capaz de saber o quão medonhos devem ter sido os seus dias nesse aspecto.
Não vou aqui entrar no mérito propriamente dito do aborto, mas no caso de gravidez decorrente de estupro, meu entendimento é que a mulher pode decidir livremente sobre levar ou não a gestação até o fim, sem ser julgada por isso. A legislação penal brasileira, inclusive, confere a ela esse direito.
Assim, não me parece justa a manifestação de um grupo de extremistas religiosos no sentido de que a menina, frise-se, uma criança, tivesse que levar até o fim, sob pena de execração moral, uma gestação que lhe foi impingida através de violência e que colocava sua própria vida em risco, segundo declarações de médicos veiculadas na mídia. Até mesmo de assassina a pobre criança foi chamada.
Fica claro para mim que havia duas vítimas nessa situação, ou seja, a criança e o feto. Confesso que não gosto de pensar no fato de que o feto já contava com seis meses de gestação, sendo, salvo melhor juízo, viável para vida autônoma, mas, diante de dois interesses colidentes, o Direito há muito já apresentou a solução dos homens: a vida da mãe vem em primeiro lugar nesse caso.
No passado acompanhei uma situação semelhante, através de várias reportagens, envolvendo igualmente uma menina de tenra idade e um estupro. Por pressão religiosa e de parcela da sociedade local, a garota veio a dar à luz. Nem me estranhou o enfoque dado pela matéria no sentido de que, um ano após o nascimento da criança, nem a igreja e nem a sociedade estavam dando qualquer respaldo financeiro ou emocional para mãe e filho. Extremamente pobres, continuavam como sempre, à margem. Apagadas as luzes dos holofotes, cada qual voltou ao seu lugar, tocando suas próprias vidas.
Desse modo, acredito piamente que o mesmo ocorreria com a menina do caso recente. Muito mais fácil e simples é levantar bandeiras, fazer camisetas e postagens em redes sociais. Abraçar a causa, no sentido verdadeiro, envolve um comprometimento ao qual as pessoas simplesmente não estão dispostas, embora gostem de fazer parecer, por autopromoção ou por achar que o Criador, seja ele quem for, importa-se com aparências e se comove com discursos hipócritas.
Como frisei no início desse artigo, não estou tratando do aborto de forma geral, mas apenas emitindo minha opinião pessoal e jurídica, sobre o verdadeiro linchamento que muitos fizeram, condenando uma criança, por atos dos quais ela sequer tinha consciência ou controle. Enquanto isso, curiosamente, ao ofensor as pedras foram bem menores, havendo até mesmo quem, insanamente, justificasse sua conduta. Por fim, se é para ficarmos no argumento da religião, que atire, quem puder, a segunda pedra sobre o caso, pois as primeiras muitos “santos” já o fizeram.