Joana tinha uma rotina pesada: acordava todos os dias antes mesmo dos passarinhos, fazia café, deixava prontas as torradas com o resto do pão do dia anterior, cozinhava um ovo para o Pedro e fazia o suco da Mariana. Ajeitava as almofadas do sofá, varria a cozinha, dava comida para o filhote de gato e para o cachorro velho e manco, sem se esquecer de um bom afago em cada um.
Se o tempo estava seco e o dia prometia ser quente, ainda molhava as plantas, elogiando aquelas que estavam mais bonitas e dando uma bronca leve nas outras. “Vocês precisam reagir. Minha parte eu faço, então tratem de melhorar”.
Levava a sério todas as formas de existência, mas assim como tratava os filhos, tratava tudo o mais. Amor e disciplina, repetia para si mesma, ora em silêncio, ora em voz alta.
Quando o marido, vigia noturno, chegava, a cama estava pronta para que ele descansasse, bem como o almoço guardado no forno. É só esquentar, dizia. Trocavam um beijo rápido e, mesmo que ela notasse o cansaço que ia transformando o namoradinho em um homem precocemente envelhecido, maltratado pelo tempo, nunca deixava de fingir ciúmes, perguntando por que estava sempre tão charmoso.
Com a bolsa surrada a tiracolo, Joana descia a ladeira, equilibrando-se para não escorregar ou tropeçar. A culpa era das tiras daquela bendita sandália. Mês que vem ela iria vendar uns bolos e compraria um sapato decente. Estava só esperando o cacho de bananas amadurecer. Tinha uma receita com aveia que seria sucesso entre as amigas da patroa. Havia dias vinha fazendo propaganda e já tinha duas encomendas. Dona Livia era um amor. Se ela pedisse, sabia que a patroa lhe arrumaria algum extra, mas preferia não misturar as coisas.
Seguia pensando na vida, se teria lã suficiente para fazer uma touca para o marido e uma roupa para o cachorro. O frio logo viria e os dois velhotes da família eram friorentos. Quando tivesse netos, com um pouco de sorte já poderia trabalhar só meio-período e faria roupinhas lindas para cada um deles. Vinha guardando um dinheirinho para emergências, escondido até dela mesma, que poderia render uma boa sacola de linhas novas. Às vezes sucumbia ao desejo de comer bombons recheados, seu pecado maior.
Ainda estava no meio da ladeira quando avistou, lá embaixo, o ônibus dela. A linha 121, Jardim Morada, com destino ao Terminal urbano, só passaria novamente dali três horas. Não podia se atrasar, porque o patrão ia viajar e era ela quem dobrava as roupas para caberem na mala de mão. Gritando para que o motorista a esperasse, arriscou uma corrida, esperançosa de que pudesse chegar até a calçada antes que o sinal fechasse. Tropeçou no desespero, despencou rumo ao nada. Bateu a cabeça ao cair, mas sequer se deu conta do sangue que escorria em um fio. Levantou-se, agarrou a bolsa e seguiu com um único pé calçado. As tiras não deram conta do tranco.
Não se atinou às cores do semáforo. Vermelho era o sangue. Verde, as plantas que precisavam dos cuidados dela. Amarelo não era o sol? Atravessou. A mala, as linhas, os netos, o beijo do marido. Tudo sumiu quando o caminhão carregado de caixas de chocolate a atingiu. Gritos, sirenes, pessoas. Quando abriu os olhos, estava no hospital e já haviam se passado muitas semanas. Fora dada como praticamente morta nos primeiros dias. Estava sozinha.
A patroa precisou de outra pessoa, que nem sabia dobrar roupas. A filha fez o próprio suco, o filho deixou de comer ovo, pois estava de regime. O marido mudou o turno e agora tinha vale-refeição. Os cachos de banana já haviam sido colhidos e comidos. O gato, que já nem era mais filhote, ao lado do cachorro, bem mais magro, formava o comitê de boas-vindas.
Ferveu água para o café e se deixou estar no sofá. Pegou as linhas que ainda tinha e começou a tecer um cachecol da sua cor favorita. Qualquer hora dessas ela pegaria o ônibus para seu próprio destino.