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outono

Minha estação preferida do ano nem deu as caras em 2024. Fez que vinha, não veio e, de vingança mandou os irmãos verão e inf(verno) mandarem como garotos de recado. De tanto que ferraram com o mundo, as estações vêm quando e se querem. Agora aguente quem puder.

Queimadas criminosas praticadas por seres abjetos agravaram o problema. Tantas vidas ceifadas sem sentido, tanta colheita que deixa de virar alimento, tanto céu azul de menos, tanta doença no ar. Lamento profunda e infinitamente a pequenez de certas existências humanas. Em um mundo movido pelo dinheiro e pela sede de poder, a vida é um detalhe apenas.

Se envelhecer é ser saudoso em alguma medida, podem me passar a carteirinha. Sinto falta dos outonos delicados, de sol ameno e céus azuis. Dele vi um ou dois dias, se tanto. Daí o inverno, que já tinha aparecido para tomar uma sopa, chegou. Houve dias tão frios que temi pelos desabrigados, bicho e gente, sobretudo enquanto brigava com o fio de água de um chuveiro aberto no mínimo.

Mas, penso, como ele, o inverno, já tinha trabalhado um pouco fora do expediente, foi coberto pelo verão. E assim o sorvete, o ventilador e o ar-condicionado foram convocados, enquanto as sopas e os cobertores ficaram de prontidão, pois sempre há possíveis plantões de última hora.

E nessa loucura toda, de esfria, esquenta, congela, frita, os ipês da cidade de São Paulo resolveram amenizar a “sofrência” e floresceram em escalas de rosa, pink, branco e amarelo. Desde as maiores árvores até as menores delas, compuseram um exército de flores, capazes de enfeitiçar mesmo os olhares mais indiferentes e distraídos. Lindo demais. Pontos de cor e luz em meio às cinzas.

Caminhando pelas ruas ou mesmo como passageira colada à janela do carro, sigo encantada com as formas, com os tapetes coloridos, rastros de existência tão diverso daquele deixado pela humanidade nas calçadas, praças, rios, florestas. Daí me lembrei do ipê que não consegui salvar aqui na rua de casa, cortado sob o pretexto de cupins que creio imaginários e foi difícil não lamentar a ausência de suas milhares de flores rosa.

Espectadora eterna, segui, dia desses, observando as praças e pequenos trechos/canteiros verdes que existem pelos bairros paulistanos nos quais as flores dos ipês disputam espaço com os sem-teto, suas barracas e, lamentavelmente, imensa quantidade de lixo. E foi aí que eu vi uma cena inusitada: entre os pertences de pessoas que “vivem” em uma pracinha, havia cães, companheiros habituais e um galo e uma galinha!

E o mais interessante é que estavam soltos, ciscando, alheios e absortos entre avenidas muito movimentadas, num arremedo de fazenda urbana. É paradoxal de tantas formas que me faltam palavras para descrever os tantos sentimentos que me atingem. O sinal abriu e os perdi de vista, mas ficaram na memória porque eu os queria retratados no papel.

O clima está doido, as pessoas estão doidas, mas os ipês e as galinhas podem nos ensinar delicadas e inusitadas lições. Que venha a primavera, se Deus quiser.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e já criou galinhas – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br