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 bento

Quando ele despencou de cima do ar-condicionado, há alguns anos, ao menos uma das vidas ficou pelo caminho, tomando o rumo que os refis de vidas felinas tomam. Arteiro, meu pretinho básico sempre se pareceu com um molequinho, daqueles que surpreendem com feitos imaginários.

Aqui em casa ele já se camuflou de tal forma que a pessoa que deixei tomando conta quando me ausentei por uma semana afirmou categoricamente, muito constrangida, que ele havia sumido, fugido ou evaporado. Depois de enlouquecer procurando o Bento, meu gatinho de seis anos, por quase três dias, ela o encontrou dormindo no sofá da sala, como se nunca tivesse deixado de estar ali.

Em outra ocasião, em um dia fria, ele entrou no armário de roupas que, fechado com chaves, impossibilitou a fuga. Quase um dia depois e o encontramos lá, relaxado e dormindo de barriga para cima. Depois daquele dia, antes de trancarmos qualquer armário ou fecharmos qualquer porta, fazemos a contagem dos gatos, só por garantia.

Quase um ninja, ele se movimenta sorrateiro. Magrinho e pequeno desde sempre, consegue passar por qualquer fresta, escalar todos os armários e se esconder, camuflado nas sombras, onde der na cabecinha dele. Com o tempo fomos nos acostumando e já não ficamos tão apavorados quando não o encontramos de imediato. Muito bonzinho e dócil, único macho entre outras quatro gatas, é uma figurinha ímpar, amável e amado.

Mas neste ano, ele que nunca adoecera, ficou quieto demais. Após descobrimos uma doença renal crônica, um tanto precocemente atingindo-o, vi desaparecer a alegria das maluquices dele, como entrar em uma bolsa e lá ficar imóvel até quase ir comigo para o trabalho. Vê-lo ainda mais magro, abatido e com olhar perdido, eu estive certa de que algumas vidas já estavam de malas prontas para partir.

Corremos com todos os cuidados médicos veterinários. Ficou internado, fez exames, tomou remédios e, entre uma piora e outra, começou a melhorar. Recuperou um pouco do peso e, num dia qualquer, estava de volta. O mesmo olhar, o mesmo gato. Deitado no meu colo enquanto assisto televisão, dormindo sobre o teclado do meu computador enquanto eu (tento) digitar e, sobretudo, alojando-se sobre meu abdômen durante exercícios de Pilates, ele pareceu ressurgir das cinzas. Menos três vidas talvez?

Estamos cientes, entretanto, que não se trata de cura. O que ele tem é crônico e não voltará a ter a saúde de antes. Contudo, há esperanças de que ele possa estar conosco por mais tempo e com qualidade de vida. Agora depende dele e do que o corpo dele ainda é capaz, sem dizer do estoque de vidas que, a essa altura, desconheço a quantas se encontra.

Fizemos e seguimos fazendo a nossa parte. É um vigiar diário pois é preciso ter certeza de que se alimenta, que está hidratado. É um trabalho que faço de coração. Desde que o resgatei das ruas, desde que ele veio até mim quando cabia na palma de minha mão, eu também fui resgatada para um lugar melhor. Dentro da finitude de meus dias, esse gatinho sem raça definida, ébano ambulante, aumentou os meus dias, enchendo-os de histórias, de risadas, de surpresas. Será eterno, dure o que durar.

Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e tem um gato preto para chamar de seu – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escriturices.com.br