Alguns textos atrás eu contei aqui sobre a saga das lagartas. Encontradas no meu pequeno limoeiro, colocadas em um vidro e alimentadas às custas de muita cara de pau que tive que vestir para conseguir, aqui e ali, folhas tenras de laranjeiras e limoeiros menos frágeis do que o meu.
No começo eram quatorze, mas um dia empurraram a tampa do pote, que era repleto de largos furos para entrada de ar e quando me dei conta estavam passeando pelos azulejos da minha cozinha. Treze foram colocadas de volta e da outra nunca mais tive notícia ou vi vestígios.
Depois de dias comendo como loucas, passaram a ficar mais quietas e encurvadas. Pressenti que estavam se transmutando, deixando de ser lagartas, naquela espécie de purgatório que antecede as borboletas. Duas retardatárias permaneceram comendo por mais tempo, até que encontrei uma morta, a menorzinha delas.
Doze crisálidas passaram a habitar o pote, protegidas da chuva e de predadores. Contudo, um dilema se instalou. Como eu viajaria após o Natal, não queria deixá-las em casa, à mercê dos meus felinos que, com toda certeza se divertiriam caçando-as. Assim, além de fazer as minhas malas e as das cachorras que daquela vez iriam junto, ainda dei um jeito de colocar na mochila a minha expectativa de asas.
Chegando no interior do estado, na cidade de Lins, onde moram meus pais, arrumei um lugar seguro e por uma semana monitorei as bichinhas que, embora aparentemente inertes, reagiam se algo lhes tocasse, o que, é óbvio, evitei a todo tempo, para garantir que estivessem em paz, fazendo o que quer que as ex-lagartas fazem lá, fechadinhas. Para minha tristeza, notei que uma delas estava secando e percebi que fora deste mundo, preferindo abrir asas em outro plano.
Tive que retornar para São Paulo, mas como iria me ausentar por mais uns dias, deixei as lagartas como minha mãe, que assumiu bravamente o posto de vigia das onze pupas restantes. Em uma manhã, enfim, a primeira delas surgiu. Linda, delicada e frágil, precisava de horas fora do casulo para se adaptar à nova condição de ser alado. Preta e prateada, tinha pequenas manchas rosas nas asas traseiras, além de minúsculos pontos alaranjados pelo corpo, igualmente escuro.
Todas as onze ganharam asas, mas somente dez voaram para longe. Uma delas caiu morta, poucas horas depois, numa quase vida pós-lagarta. Delas só vi as fotos e ouvi os relatos dos meus pais, guardiões das minhas asas, como aliás, sempre o foram. Gosto de imaginar que terão alguma chance de voar livres e a salvo pelo tempo lhe o destino lhes der. Na era das reclusões, quem tem asas é rei, rainha ou simplesmente borboleta.
Difícil não pensar nas muitas metáforas que me ocorrem, mas por ora mantenho minhas asas abertas apenas dentro de mim, onde é mais seguro o voo, onde ainda é permitido escolher entre ser lagarta ou borboleta, sem casulos alheios que buscam aprisionar as vozes dissonantes ou as penas de outras cores.
Nem sei se a borboleta, ressurgida, consegue se reconhecer como a lagarta que um dia foi ou se se julga senhora dos ares, alheia às dores das irmãs que ainda se arrastam por aí. Tão delicadas e efêmeras as asas das borboletas, como são, igualmente, tantos sentimentos, esperanças, amores, amizades e direitos.