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galinha

Mal eram onze da manhã e toda a família já conseguia ver que tia Nicoleta estava bêbada. Todo domingo era a mesma coisa, fazia mais de vinte anos. Ela começava a cantarolar as músicas italianas do tempo das vitrolas. Eu até já conhecia algumas de cor, de tanto ouvir. Com o rosto afogueado, a tia ficava com a voz mole, escorregadia. Parecia até que as palavras queriam fugir, cansadas daquela mesmice, mas ela não deixava.

Zia Nicoleta, poveretta, era uma mulher triste. Tudo culpa do Nonno Nino, que a proibira de se casar com o Manuel, o português dono da padaria do bairro. Nunca mais Helena quis se casar ou namorar ninguém. Era mulher de um só amor, dizia. Vivia das lembranças do primeiro beijo e da tristeza da despedida, depois do Manuel ir embora num repente, sem avisar ninguém.

O caso era bem suspeito, por sinal. Todo mundo sabia que o Nonno era muito ciumento, mas se mordia de ciúmes não era da filha e muito menos da mulher. O velho Nino tinha era ciúmes das galinhas. Não de qualquer galinha, é claro, mas de algumas em especial. Criara três simpáticas penosas desde que eram pintinhos. Encontrou as bichinhas ciscando, desemparadas, sem uma galinha mãe por perto. Algumas migalhas de pão depois e elas já lhe pertenciam.

Pia, Lia e Fia eram tratadas como rainhas. Rainhas galinhas, mas definitivamente rainhas. As aves dormiam dentro de casa, empoleiradas no mancebo de madeira. Comiam apenas do bom e do melhor e seguiam felizes na inocência de quem tem cérebro pequeno. Até que tudo mudou. Uma das galinhas desapareceu. Só uma única pena foi encontrada no local.

Os cachorros e gatos da rua foram considerados suspeitos em potencial e o Nonno fez questão de entrar nos quintais de todos os vizinhos procurando pela Lia. O velho oscilava entre o ódio e o choro. O responsável iria pagar caro por aquela barbaridade. E a raiva pelo portuga nasceu naquele momento, quando o Nonno olhou para a padaria, que ficava do outro lado da rua.

A placa com o prato do dia, disposta logo na entrada do estabelecimento que também servia almoços aos domingos, era Galinha a cabidela. Só podia ser isso. Fia fora assassinada cruelmente. Era culpa daquele português cheio de conversinha mole. Se ele queria ter Nicoleta como esposa, isso era problema dele. A filha tinha o gênio medonho da mãe e sabia se defender, mas suas inocentes galinas? Crueldade pura. Não teria mais casório e pronto.

Começou como discussão e terminou como briga feita feia demais. O Nonno era um homem forte e o franzino Manuel perdeu uns dois dentes, quebrou uma costela e no dia seguinte fechou a padaria, mudou de cidade e Nicoleta foi proibida de falar com ele novamente.

Desde então, todo domingo, dia do tradicional macarrão com frango e da família reunida, Nicoleta afogava as mágoas, na companhia do tinto suave e da música que a fazia se lembrar de como havia, por acidente, há décadas, atropelado a galinha favorita do pai e de como Manuel trocara, por um beijo, a tarefa de dar sumiço no cadáver.

 Cinthya Nunes é jornalista, advogada, professora universitária e já criou muitas galinhas, as quais nunca comeu, tampouco atropelou – Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo./www.escrirturices.com.br