A massa escura que eu não distinguia direito era mesmo um morceguinho morto. Estava com as asas enroladas em volta do corpo, tal qual uma bolinha. Uma das cachorras olhava para ele, aparentemente sem entender do que se tratava. Impedimos, em tempo, que fizesse uma verificação com os dentes e língua.
Algumas horas antes eu havia colocado o néctar dos beija-flores e das cambacicas que, de noite, é consumido pelos muitos morceguinhos que aparecem no nosso quintal. Sempre me pergunto de onde eles vêm, pois surgem um pouco depois das 20h e, fazendo acrobacias áreas, dão rasantes pelas cabeças de quem se encontrar na pequena e verde área externa que possuímos.
Em três outras oportunidades, durante os quase quatorze anos em que moramos nessa casa na zona sul de São Paulo, nossa gata Chica Maria apareceu com pequenos morcegos dentro de casa. Em todas essas ocasiões, contudo, os filhotes do Drácula saíram ilesos, sendo colocados de volta à liberdade e segurança. Caçadora habilidosa, a Chica é também cuidadosa e suas presas são presentes vivos que ela me traz.
Acreditamos que a criminosa seja a Nina, outra gatinha nossa, igualmente frajola, mas que tem o dobro do peso da colega. Embora não tenhamos presenciado o crime, cremos que, leve e rápida, a Chica tenha capturado o morcego e, ao trazê-lo para dentro de casa, tenha sido interceptada pela Nina que não economizou na mordida, matando o pobrezinho.
Depois de limparmos tudo, com o cuidado de esterilizarmos ao máximo os locais pelos quais o morcego foi sendo colocado enquanto estávamos fora da sala, abateu-se sobre mim a tristeza por essa morte tão sem sentido. Os gatos são predadores natos, mesmo quando não precisam da caça para comer. Matam por instinto? Muitas vezes penso que é por brincadeira, assim como fazem com pequenas bolinhas de papel ou com tantas folhas que nos trazem de presente diariamente.
É claro que vacinamos nossos animais regularmente e tudo o mais e gosto de ver os morceguinhos felizes se refestelando com o líquido adocicado, mas agora fico com a sensação de quem lhes preparou uma espécie de armadilha. Ainda que eu fixe os recipientes no alto, por alguma razão que desconheço, os morcegos gostam de se exibir em voos rasteiros, passando a poucos centímetros das cabeças humanas, felinas e caninas.
Nem quis olhar o corpo do animalzinho. Parece-me uma sina injusta. Morrer de bobeira, por motivo nenhum. E isso me faz pensar na finitude e fragilidade de tudo aquilo que é vivo. Uma fração de segundo é capaz de mudar absolutamente tudo, sem que seja possível preparo, justificativa.
Depois de enterrar o diminuto cadáver, notei que os outros morcegos continuavam por lá, ainda vivendo perigosamente. Vivemos nós também quase às cegas, ignorando o fado que nos aguarda em algum lugar. Talvez, então, o melhor mesmo seja deixarmos nossos sonhos voarem livres por aí, por que todo voo pode ser o último? Ou, na ilusão de nos livrarmos do mal, devemos nos esconder em nossas cavernas, deixando que a vida passe à revelia de nossos medos? De um jeito ou de outro, nas nossas histórias reais os personagens morrem no final e essa é a única certeza do roteiro que trazemos para o lado de cá.
Justa ou injusta, longa ou curta, a vida é uma linha tênue, invisível, na qual o Escritor primeiro, muitas vezes, parece confundir rascunho e arte final, colocando pontos onde somente esperávamos vírgulas.